quarta-feira, 12 de maio de 2010

Pode o juiz controlar in concreto a competência para as ações coletivas?

O sistema de tutela jurisdicional coletiva brasileiro é, reconhecidamente, um dos mais importantes e avançados do mundo, seja pela sua amplitude (engloba a proteção de qualquer interesse ou direito difuso, coletivo ou individual homogêneo), seja pela abertura da legitimação ativa a entidades públicas e privadas, seja, enfim, pela sua teórica prestabilidade a disseminar democrática e isonomicamente não só o acesso, mas sobretudo a prestação da justiça em todo o território nacional.
Como justificativa à insatisfatoriedade e contradição no funcionamento concreto de tal sistema, todavia, costuma-se apontar a continental dimensão territorial do país, que traz consigo naturais e profundas diversidades regionais, refletidas nas conformações dos tribunais estaduais e federais. Assim sendo, nada mais certo do que se esperar disparidades quando da interpretação e atuação do processo coletivo em temas sensivelmente importantes, como os da competência, da legitimação ativa e da eficácia subjetiva da coisa julgada.
Estamos convencidos, por outro lado, que muito antes e para muito além do problema da amplitude territorial brasileira, a enorme e real barreira ainda não transposta pela tutela jurisdicional coletiva está mais relacionada com injunções político-ideológicas. Como todos sabem, não é nada fácil implementar-se um sistema processual tão comprometido com valores democráticos, solidários, igualitários e libertários em um país ainda dirigido e dominado por interesses bem menos nobres.
O debate que se esconde por trás da verificação da competência jurisdicional para os processos coletivos, portanto, é muito menos técnico do que político. Isso tudo fica ainda mais claro quando se verifica a maneira pela qual política e desastrosamente implantou-se legislativamente uma absurda e tecnicamente incompreensível vinculação entre competência jurisdicional e abrangência da eficácia subjetiva da coisa julgada derivada de processos coletivos.
Não foi à toa, portanto, que consideramos o tema da competência jurisdicional o verdadeiro calcanhar de Aquiles do sistema brasileiro de tutela coletiva. Com efeito, é na (in)definição do juiz natural para o processamento e julgamento dos feitos coletivos que se esconde grande parte dos cruciais problemas atrelados à eficácia das decisões e ao devido processo legal coletivo, mormente quando se trata de avaliar ações destinadas a discutir danos ou ilícitos de proporções regionais ou nacionais.
Segundo uma linha de razoável interpretação do sistema processual conformado pelas Leis nº 7.347/1985 c/c a Lei nº 8.078/1990, inicialmente firmada na jurisprudência do STJ, juízos das capitais dos Estados e do Distrito Federal seriam concorrentemente competentes para os processos coletivos cujos objetos dissessem respeito a danos de extensão regional ou nacional. Assim sendo, o critério da prevenção resolveria eventual conflito da competência concorrente e as decisões proferidas teriam potencial amplitude erga-omnes ou ultra-partes (consentânea com a natureza indivisível das pretensões metaindividuais), independentemente da divisão territorial organizacional do Poder Judiciário estadual e federal e do domicílio dos beneficiários do provimento.
Todavia, tal critério nunca restou pacificado dentro do Superior Tribunal. Sempre pareceu, aliás, que a aplicação de referido critério estaria a depender de qual o específico “interesse metaindividual” envolvido, quando não, de quem seja o demandado...
É o que se extrai de pelo menos duas recentes e preocupantes decisões do STJ, que ameaçam simplesmente implodir qualquer pretensão de se conquistar uma verdadeira eficácia erga-omnes nacional e, por extensão, o próprio sistema de tutela jurisdicional coletivo brasileiro.
No julgamento do Resp 1.034.012, relatado pelo Ministro Sidnei Beneti, decidiu a 3ª Turma, à unanimidade, que a eficácia de acórdão proferido pelo TJ/DFT em ação civil pública restringe-se ao território do Distrito Federal, mesmo tendo veiculado a ação coletiva inequívoco interesse de âmbito nacional. Tratava-se de condenação da operadora Brasil Telecom à restituição em dobro de quantias
indevidamente cobradas de seus consumidores (espalhados por todo o território nacional). No entender do relator, como o mérito da ação foi julgado pelo TJ/DFT e não pelo STJ, não seria possível estender os efeitos do julgado a nível nacional: “Ressalte-se que no caso dos autos, não está o Superior Tribunal de Justiça a decidir o próprio mérito da ação civil pública. Se o mérito fosse julgado por esse Tribunal, de competência para todo o território nacional (...), aí sim haveria a eficácia erga omnes em âmbito nacional, em virtude da abrangência federal da jurisdição desta Corte”.
Em outra decisão recente, proferida no âmbito de Embargos de Divergência relatados pelo Min. Fernando Gonçalves, a 2ª Seção do STJ acolheu a pretensão do embargante (Banco de Crédito Nacional) quanto à restrição territorial da eficácia de sua condenação à reposição dos expurgos inflacionários das cadernetas de poupança, ocorridos em janeiro de 1989. Mais uma vez, em que pese a demanda coletiva ter sido proposta por associação civil (IDEC) em defesa de correntistas espalhados por todo o território nacional, determinou o STJ a restrição da execução da condenação ao Estado de São Paulo (onde fora deduzida a inicial), não beneficiando, assim, aos correntistas com domicílio em outros Estados.
Desta forma, como se depreende dos tortos raciocínios externados pelas referidas decisões do STJ, a eficácia nacional dos provimentos judiciais proferidos em demandas coletivas ficariam condicionados não só à acessibilidade recursal de tais feitos aos tribunais superiores, como também a um julgamento do mérito da demanda no âmbito dos recursos. Aliás, a partir da compreensão de tais arestos, pode-se afirmar que a eficácia erga-omnes nacional poderia ocorrer tão somente de forma eventual e acidental.
Assim, v.g., mesmo que o demandado em uma ação civil pública reconhecesse a total procedência dos pedidos contra si deduzidos, no sentido de ressarcimento de vítimas e sucessores espalhados por todo o território nacional, não bastaria a sentença condenatória proferida por um juízo monocrático estadual ou federal da capital de um Estado ou do DF, nem mesmo um acórdão dos respectivos tribunais de Justiça ou regionais Federais. Nesta hipótese, enfim, não se vislumbraria qualquer possibilidade de eficácia nacional.
Na mesma linha, a prosperar a limitação da eficácia da decisão ao território do Estado onde fora ajuizada a inicial, os legitimados ativos se veriam compelidos a repetir idênticas demandas perante todos os juízos estaduais ou federais em cujos territórios viessem a ser domiciliados os beneficiários da tutela jurisdicional, então “coletiva, pero no mucho...”.
Não é preciso ser processualista (e pelo visto talvez seja preciso não sê-lo) para descobrir que um tal raciocínio é absolutamente inadmissível, por desconsiderar uma das mais graves e relevantes garantias inerentes ao devido processo legal (juiz natural) e inviabilizar por completo qualquer pretensão de tutela genuinamente coletiva.
Ao negar a natural eficácia erga-omnes regional ou nacional que deveria decorrer do julgamento de procedência de ações coletivas por qualquer juízo de capital de Estado ou do DF, sob os falaciosas interpretações da famigerada legislação canhestra antes mencionada, o STJ simplesmente fere de morte a garantia do juiz natural, da efetividade da tutela jurisdicional e do devido processo legal coletivo, tornando o sistema de tutela jurisdicional coletiva uma verdadeira ilusão para o “grande público”, para regozijo do “pequeno público”.
Precisamente por essas incongruências legislativas e lamentáveis interpretações doutrinárias e jurisprudenciais que acabaram praticamente levando a nocaute o processo coletivo brasileiro, tramita na Câmara dos Deputados (não sem inúmeros percalços e nomeados inimigos) o projeto de Lei nº 5139/2009, que procura, antes de mais nada, contornar os imbróglios criados a respeito da interpretação e aplicação dos temas sensíveis da tutela coletiva, dentre os quais, os da competência e da eficácia da coisa julgada.
Neste sentido, o projeto nada inventa: simplesmente repete o atual critério do local do dano como definidor do juízo absolutamente competente, adotando a orientação anteriormente já respaldada pelo STJ para as hipóteses de danos regionais ou nacionais (competência concorrente entre as capitais dos Estados e do DF).
Como o projeto revoga a malfadada regra da restrição territorial da eficácia da coisa julgada, finalmente objetiva-se a importantíssima fixação do juiz natural, agora ainda mais fortemente por via da criação de cadastros nacionais de ações coletivas, que propiciarão a real unificação da tutela coletiva perante o juízo prevento.
Dessa nossa breve exposição, a resposta para a provocação desse debate a respeito do controle da competência pelo magistrado não é fácil.
Tecnicamente, de lege lata, a confusão gerada pela justaposição de regras de competência (art. 2º da Lei nº 7.347/1985 c/c art. 93 da Lei nº 8.078/1990), indevidamente interligadas com as regras da eficácia da coisa julgada (art. 16 da Lei nº 7.347/1985 c/c art. 103 da Lei nº 8.078/1990 c/c o art. 2º-A da Lei nº 9.494/1997), ainda mais aumentada pelas naturais dificuldades na verificação da extensão dos danos (locais, regionais ou nacionais) e pelas recentes orientações da jurisprudência do STJ acima mencionadas, torna tal tarefa, apesar de possível e necessária (afinal de contas, segundo a tradicional lição da teoria geral do processo a competência absoluta constitui pressuposto processual de validade), de dificílima concretização. Isso, claro, caso esteja o magistrado realmente consciente do real significado de tutela jurisdicional coletiva, que não comporta fracionamentos de julgamentos (por Estados, ou por regiões), ou, o que é ainda pior, tratamentos díspares para jurisdicionados que possuem idênticos direitos.
Por tal motivo, dentre inúmeros outros de ordem técnica e social, a aprovação do projeto de Lei 5.139/2009 deve ser defendida por todos aqueles que sinceramente desejam a afirmação do sistema brasileiro de tutela jurisdicional coletiva, do qual depende a afirmação dos direitos da imensa maioria da população brasileira que não tem acesso à justiça e a quem se está negando tal acessibilidade, toda vez que se restringe a eficácia da coisa julgada mediante a subversão da competência jurisdicional.

Artigo de: Elton Venturi
Professor da UFPR, da UTP/PR e do Instituto Romeu Bacellar.
Mestre e Doutor (PUC/SP) e Pós-doutor (Universidade de Lisboa).
Procurador da República

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