domingo, 9 de maio de 2010

NEUTRALIDADE DO JUIZ E ATIVISMO JUDICIAL

1. Introdução


O juiz, desde as origens do processo, sempre ocupou um lugar de proeminência no processo, constituindo-se num dos sujeitos da relação processual, cuja atuação possibilita o fornecimento da prestação jurisdicional caracterizada pela sentença de mérito.
O processo enquanto relação jurídica dinâmica é uma relação entre sujeitos, que o impulsionam seja por força da autodinâmica, a cargo do juiz, seja da heterodinâmica, a cargo das partes.
Sempre se afirmou ser o processo uma relação jurídica angular (Hellwig) ou triangular (Bülow e Wach), estando o juiz posicionado no vértice dessa relação, a interligar autor e réu na sua demanda a respeito do bem da vida pretendido.
Muito se preocupou, em doutrina e jurisprudência, com a imparcialidade do juiz, ressaltando para preservá-la as "virtudes" da neutralidade, apesar de se exigir dele, no final do processo, o posicionamento, no todo ou em parte, em favor do autor ou do réu.
Essa concepção sobre a figura do juiz no processo, além de não corresponder à realidade significa a negação da trilogia principiológica que garante o desenvolvimento do processo: instrumentalidade, efetividade e utilidade.


2. Imparcialidade e neutralidade do juiz

Ninguém põe em dúvida que, sendo o juiz uma figura proeminente no processo, não deve assumir posições que competem aos advogados das partes, o que não significa que deva quedar-se como um ser inerte para não comprometer a sua "neutralidade", como se fosse esta o fiel da balança sobre a qual repousa a confiança na Justiça.
Vulgarmente, ser neutro significa não tomar partido nem a favor nem contra, numa contenda, mas, definitivamente, não é essa a posição que se exige do juiz, mormente em face da desigualdade material das partes e da grandiosidade da função jurisdicional no afã de prestar justiça justa.
Ser imparcial significa, de um lado, não ser parte (in parcial), o que distingue o juiz dos demais sujeitos processuais que são pela sua própria natureza parciais, e, de outro, que não tem interesse próprio na disputa, nem a favor de um nem de outro litigante, senão em que a final seja reconhecida razão a quem tem realmente a razão.


3. Democratização do processo

Sendo o processo um conjunto de atos tendentes à resolução da lide (Carnelutti), deve desenvolver-se segundo princípios que garantam a sua democratização, proporcionando às partes iguais oportunidades, só quebradas quando exigido pela sua situação processual. A democratização do processo não fica comprometida quando a lei reconhece uma situação de vantagem ao autor ou ao réu, em face da sua posição no processo, ou conforme demande sozinho ou em litisconsórcio com outros litigantes. Assim, nas ações de reparação do dano sofrido em razão de delito ou acidente de veículos, o autor pode demandar no foro do seu próprio domicílio ou no do local do fato (art. 100, parágrafo único, CPC), ou, ainda, demandar o réu no domicílio deste (art. 94, caput, CPC). O réu pode, na contestação, formular pedido em seu favor, desde que fundado nos mesmos fatos referidos na inicial (art. 278, § 1º, CPC). Se os litisconsortes forem representados pelo mesmo procurador, o prazo para a prática de atos processuais é simples (art. 177, primeira parte, CPC); se, no entanto, tiverem diferentes procuradores, o prazo será contado em dobro para contestar, para recorrer e, de modo geral, para falar nos autos (art. 191, CPC).
No entanto, a Fazenda Pública, quando parte em juízo goza de inúmeros privilégios --, prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer (art. 188), intimação pessoal de seus representantes legais (leis especiais), pagamento mediante precatório (art. 730, CPC), remessa necessária (art. 475, I, CPC) --, não em função da sua posição no processo, a justificar eventual tratamento mais favorável, mas simplesmente por se tratar de poder publico, com o que bate de frente com a democratização do processo. É que a parte mais fraca no processo particular, na sua qualidade de súdito, e não a Fazenda Pública, que conta com órgãos preparados para a defesa dos seus interesses.


4. Paridade de tratamento - Princípio da igualdade de armas

Corolário da democratização do processo é o princípio da igualdade das partes no processo, conhecido também como princípio da paridade de tratamento, ou princípio da igualdade de armas.
Tais princípios têm o objetivo comum de corrigir a inferioridade processual de uma das partes, relativamente à outra, porquanto a desigual situação econômica, financeira e social delas pode conduzir à vitória aquela que não tem razão.
Tem-se afirmado que a igualdade de armas não é apenas a igualdade formal, mas a igualdade material, de forma que não basta conceder às partes prazos idênticos para falar nos autos, mas criar um mecanismo diferenciado de ciência dos atos processuais, quando se tratar de defesa patrocinada por assistente judiciário ou defensor público, através da intimação pessoal.
A igualdade de armas não é assegurada com a simples entrega de uma espada a cada um dos litigantes, o que significaria uma igualdade meramente formal, na medida em que o mais forte usaria a sua força para vencer a luta, mas "dar uma espada mais longa a quem tem braço mais curto".


5. Ativismo judicial e correção de desigualdades processuais

Primeiramente, evite-se qualquer identificação entre "ativismo" judicial e direito "alternativo", pois este é uma variante da conhecida escola do direito livre, enquanto aquele é um movimento que faz da atividade do juiz algo essencial ao exercício da atividade jurisdicional. O ativismo judicial, de um lado põe em realce o a instrumentalidade do processo, possibilitando ao juiz chegar à verdade real em vez de se contentar com verdade apenas formal, e, de outro, exorciza alguns mitos processuais como a neutralidade do juiz e o "quod non est in actis non est in mundo".
O ativismo judicial traduz também a posição do juiz no processo, tendente a suprir a desigualdade processual das partes, decorrente de omissões processuais de seus patronos, com o objetivo de concretizar o princípio da igualdade material de armas.
Fala-se, também, em ativismo judicial enquanto atividade exercida no interesse de ambas as partes e da própria Justiça, fazendo do processo campo propício da autodinâmica, enquanto força motora do processo por parte dos órgãos judiciais, antes do que da heterodinâmica, que é a movimentação do processo por ato das próprias partes litigantes.
O ativismo judicial marca presença no Código de Processo Civil, logo no art. 125, estabelecendo que o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I) assegurar às partes igualdade de tratamento; II) velar pela rápida solução do litígio; III) prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da Jutiça; e IV) tentar, a qualquer tempo, conciliar as partes.
No tocante à tentativa de conciliação, existe uma diferença entre o juiz ativo e o juiz neutro, pois aquele se empenha em conduzir as partes a um acordo, pondo fim ao litígio, enquanto este se detém na retórica de indagar se as partes têm interesse num acordo, contentando-se com a resposta negativa de uma delas ou de ambas.
O art. 129 do CPC municia o juiz de poder para impedir que as partes se sirvam do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, caso em que deve proferir sentença que obste esses objetivos.
Ainda na fase postulatória, manifesta-se a atividade ativa do juiz, através do suprimento de deficiências de peças processuais, determinando o art. 284 do CPC que, verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento do mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de dez (10) dias.
Na fase instrutória, também é grande o ativismo judicial, dispondo o art. 130 do CPC que caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias. Esta é uma manifestação do ativismo em que a atividade do juiz é voltada para o interesse da Justiça, pois pode ser até que a parte tenha interesse na produção da prova, mas não terá a chance de produzi-la.
Ainda no campo probatório, pode o juiz, antes de proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas (art. 132, parágrafo único), podendo fazê-lo mesmo que tenha presidido a audiência de instrução, sendo esta mais uma manifestação do ativismo judicial.


6. Considerações finais

A neutralidade do juiz, antes do que um princípio, não passa de um mito que não encontra mais eco no moderno direito processual. O processo atual, ao contrário, é campo fértil ao ativismo judicial, enquanto atividade de um julgador atuante e consciente de que a administração da justiça não se compraz com a inércia do juiz.
A segurança na prestação jurisdicional resulta de uma justa batalha judicial em que as partes se enfrentam em igualdade de condições, garantida pelo princípio da igualdade substancial das armas, que apenas o ativismo judicial é capaz de assegurar.


Fonte: J.E. Carreira Alvim, doutor em Direito pela UFMG; membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP); membro do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. - extraido do site: http://www.direitoprocessual.org.br/dados/File/enciclopedia/artigos/processo_civil/28%20J%20E%20Carreira%20Alvim%20-%20NEUTRALIDADE%20DO%20JUIZ.doc

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